Sobre o tempo e a vida: De onde vem a poeira?


Foto: Jonatas Bragança       .
Foto: Noemi Ramos Bragança    .

Que mundo perfeito o meu, reflito, enquanto observo a incidência compassiva do sol sobre meu chá na mesinha redonda de vidro. Uma xícara de chá de porcelana legítima, rosas pintadas à mão calculadamente desbotadas ao estilo vintage, toques de dourado aqui e lá. Uma preciosidade. E não é qualquer chá. É Darjeeling, o único que me apetece. Saudável, além de tudo. A luz reflete contra os meus olhos nos cantos de ouro e na superfície amarelada do chá e eu sorrio. Assim como aconselhou aquele livro de auto-ajuda, qual era o nome, um quê de você também pode ser feliz.  É o apreciar as pequenas coisas. Os detalhes. Agora, sorria. Respire fundo. Dizia que a melancolia é a saída dos preguiçosos. Os que se entristecem são apreciadores doentios de drama e sentimentalismo exagerado, como aquela categoria enjoada entre os mais jovens. . . como se chamam?. . . Enfim, enquanto tiver força de vontade e poder de persuadir a mim mesma, estarei bem. Sim, às vezes, é tentador recorrer ao descontrole, mergulhar profundamente, deixar-me envolver por tentáculos de desespero nas águas do descontentamento. Não, não existe descontentamento, insisto em mim mesma. Satisfação nas pequenas coisas... no aroma doce de baunilha que borrifei pela sala... no tapete áspero sob os meus pés descalços... nos volumosos e desajeitados livros antigos a enfeitar minhas estantes de mogno... no papel de parede em relevo róseo pastel, que me faz pensar em Versalles... nas pétalas de rosas escuro sangue a pender do vaso... nas curvas de gesso carinhosamente detalhadas no teto que eu e o Pedro sozinhos fabricamos. . . Um momento. Eis que no canto do teto em questão me chama a atenção dos olhos um brilho furtivo cor de prata... uma teia de aranha sobrevivente às minuciosas limpezas. Mas não é que existe uma certa beleza em fios tão finos, tão frágeis e tão . . .passageiros? . . . De repente, me sobrevem um cansaço, embora não sejam ainda nem 5 da tarde. E pelo segundo que me deixo escapar, vem o cavalgar repentino de todas as coisas monstruosas que me assombram. A xícara balança tilintante em seu pires, acompanhando o tremor de todo o meu mundo perfeito. Silêncio, grito em minha alma e tudo se acalma. Ajusto a alça da xícara para o ângulo perfeito e volto à minha perfeita reflexão persuasiva. Sim, estou bem satisfeita. Não, não sou vazia. Enquanto houver beleza e baunilha e detalhes para apreciar estarei bem, estarei tranquila. E contra o cansaço existe sempre Darjeeling. Afinal, como suportavam a vida os antigos antes de inventarem o chá?

     Foto: Noemi Ramos Bragança 
Então fecho os meus olhos e reclino com cuidado a cabeça contra a poltrona bege que pertencia à vó do Pedro. E então, de uma só vez, uma nuvem se põe sobre o sol, o mundo se esfria, o vento uiva, poeira que ninguém sabe de onde vem se assenta desorganizada sobre os móveis, a xícara se parte, tufos de sujeira se amontoam, papéis amarelados dançam pela sala, as rugas se aprofundam, os cabelos rareiam tanto quanto esbranquiçam, as pernas tremem, os braços fatigados de décadas cedem, os pulmões se esgotam, o sangue desiste de correr, a pele acinzenta, os pensamentos e as reflexões passam, a satisfação passa, a dor passa, as coisas que me assombravam passam, o tapete se esfacela, as estantes ruem, as paredes caem, o gesso se desfaz, tudo se torna pó.

Soluço em meu sonho profético. Minha satisfação é pó. Tudo é pó. E quando acordo ainda enebriada e incerta do que sonhei, só me pergunto: É daí que vem a poeira? Do passado?