Entre paixão, amor e os anos


Os sentimentos mudam com o passar do tempo. Ao olhar para trás percebemos, pela primeira vez com clareza, os sentimentos que cresceram, aqueles que diminuíram e os que talvez por completo desapareceram. Abaixo o registro fiel de duas fases da vida de um casal, representados por confissões secretas em dois dias diferentes distantes por anos:

28 de janeiro de 1997, 05:35

Já está amanhecendo, nem acredito. É verdade que não planejei passar a noite toda com você, mas também não tentei parar. Tudo a seu respeito me fascina. E mais fascinante ainda é você também querer passar a noite toda comigo, mesmo que entre nós se encontrem telas de computador e uma cidade de distância. Sinto como uma corrente elétrica percorrendo o meu corpo e o sono adiado me torna extrovertida, sincera. Acho que meu cansaço deve ser mais eficaz que álcool para descontrair. Entendo que mal o conheço e só nos encontramos pouquissimas vezes, mas parece que já o conheço desde sempre. Espero, lá no fundo do meu coração realmente espero, que a maneira que confio em você vá valher a pena. Senão terei desperdiçado um pedaço de mim, já que agora estou derramando meu coração de uma forma que jamais fiz com alguém. Estou jogando all in, sem as melhores cartas e sem garantias. É estúpido, irresponsável, mas o sono me impulsiona e falo, falo de mim mesma, dos meus planos e meus sonhos. Não ria, por favor. E você não ri, compreende. Sobre o que falamos a noite toda afinal? Não sei mais dizer, então espero que não perguntem. Acho que falamos sobre nada, sobre tudo, sobre a vida, sobre baboseiras, rimos à toa, lisonjeamo-nos mutuamente, acreditamos nas borboletas, na energia que não nos permite dormir, nas certamente enganosas primeiras impressões, no sorriso encantado do outro, nas promessas de romance e diversão e possível futuro. Há futuro? Não sei. Isso é realmente estúpido. Mas não consigo parar. A manhã já chega, o sol a nascer, ambos precisamos dormir. Você tem que ir para a aula em algumas horas, mas provavelmente estará tonto demais para aproveitar qualquer coisa. Minha mãe ficará preocupada porque só consegui acordar ao meio-dia. "Você vive com sono ultimamente, está doente?", ela perguntará. Talvez eu fique vermelha ou não consiga conter um sorriso bobo. Não sei que desculpa inventarei. Estou apaixonada e todo o mundo gira em torno disso. Então o que é escola, o que é comida, o que é responsabilidade, o que é a vida, se tenho você para me ocupar e eu para ocupar você? Nada, tudo é nada, tudo pode esperar. Estou tonta e empolgada e, finalmente, com muito sono... Certamente é com você que irei sonhar...

05 de junho de 2012, 23:20

Vejo seus lábios se movendo e entendo que você está falando alguma coisa sobre alguma ideia que teve a respeito de alguma coisa... Parece bem empolgado, mas temos que acordar cedo amanhã para o serviço, então será que não podemos conversar sobre isso outra hora? Você percebe minha expressão de sono e se aquieta. Sei que ainda tem muita coisa para contar e eu continuaria tentando ouvir, mas, ao invés de prosseguir em falar, você dá a volta ao redor da cama e me embrulha em cobertores. É uma noite de verão, mas esta está particularmente gelada. Você beija minha boca e minha testa e eu aprecio o calor que irradia de você. Sempre tenho a sensação de que você é tão quentinho, então será que você tem a sensação de que sou fria? Não penso mais nisso, porque logo estou navegando em sonhos, lutando contra uma força que me arrasta em loops intermináveis de uma certa noite em uma certa praça da cidade, você esperando debaixo da chuva, eu atrasada, muito atrasada para o nosso encontro, com frio, você com aquele capuz que não saia da cabeça e o cabelo comprido escapando pelas abas, eu acenando de longe ao vê-lo e você vindo me cumprimentar com um beijo na bochecha como apenas amigos fazem, então percebo que você ainda é só meu amigo e está tão frio que até começa a nevar, mas de repente lembro que é verão na realidade e tudo isso se torna tão estranho, mas a neve insiste em cair tempestuosamente e logo a cidade inteira está totalmente soterrada num mar de branco e já não mais o vejo e não sei mais onde estamos, pois a pirâmide no meio da praça era meu único ponto de orientação, mas estou estranhamente calma-não sei mais exatamente o que ou quem perdi, mas acho que perdi um amigo de capuz que me esperava debaixo de chuva, só um amigo e não deveria importar pois mal o conheço, mas de repente não é a possibilidade de morrer congelada que me preocupa e sim a perda daquele estranho na neve que de alguma forma parece significar tanto mais do que deveria. Acordo assustada, com um eco ensurdecedor de perda e tremendo de frio. Estico o braço para o seu lado da cama tentando aproveitar um pouco do seu calor e encontro a cama vazia e fria. Que horas são agora? Parece muito tarde, mas não sei bem dizer. Giro na cama com câimbras assustadoras, tentando me desenroscar dos cobertores e cambaleio pelo corredor até a cozinha, de onde ouço sons de pratos batendo e água a correr.

- Amor, você não vem dormir? – pergunto com voz incerta e rouca, ao avistá-lo. Você sorri um sorriso cansado, enquanto enxagua pratos e panelas ensaboados.

- Assim podemos dormir até mais tarde amanhã. – justifica o ato de bondade.

Meu bem. Achei que era amor que me levava naquele tempo a impedí-lo de dormir, a concentrar e sugar seu tempo e pensamentos, abandonar seus planos e se exaurir em me querer. Mas amor não era nada disso. Você se resfriou ao me esperar na chuva, faltou em aulas por cansaço e, por falta de tempo, talvez tenha perdido amizades, experiências e Deus sabe o que mais. Eu causei quase de propósito tudo isso em você, em nome do meu grande amor. Você, em nome do nosso amor, massageou os meus pés mesmo quando fedorentos, abrigou-me do frio e quantas vezes foi pego lavando toda a louça de madrugada? 
Qual é a diferença? Um amor era idolatria, o outro serviço. Um era egoísmo, o outro cuidado. Um era desejo por felicidade, o outro desejo pela felicidade do outro. Não sei quando ou como tornou-se claro que querer você me querendo não era o mesmo que amá-lo. Mas, agora o quero e o amo, não amando-o por querê-lo, mas amando-o por finalmente entender o que é amar. Obrigada, amor, por me ensinar.  


I loved you first: but afterwards your love
Eu o amei primeiro: mas, depois, o seu amor
Outsoaring mine, sang such a loftier song
Superando o meu em vôo, tão mais nobre canção cantou
As drowned the friendly cooings of my dove.
Que o amigável arrulhar de minha pomba afogou
Which owes the other most? my love was long,
Qual deve mais ao outro? meu amor foi longo
And yours one moment seemed to wax more strong;
E o seu, por um momento, pareceu mais forte crescer
I loved and guessed at you, you construed me
Eu o amei e avaliei, você me interpretou
And loved me for what might or might not be –
E me amou pelo que poderia ou não ser...
Nay, weights and measures do us both a wrong.
Não, pesos e medidas são injustos para nós dois.
For verily love knows not ‘mine’ or ‘thine;’
Pois de fato o amor não conhece "meu" nem "teu";
With separate ‘I’ and ‘thou’ free love has done,
De separar "tu" e "eu" o livre amor já acabou,
For one is both and both are one in love:
Pois um é ambos e ambos são um no amor:
Rich love knows nought of ‘thine that is not mine;’
O rico amor não conhece nada de "teu que não é meu",
Both have the strength and both the length thereof,
Ambos têm dele a força e e ambos têm dele a duração
Both of us, of the love which makes us one.
Ambos, nós dois, do amor que nos faz um.
Monna Innominata, Christina Rossetti