Os pequenos crimes e a grande culpa

Quantos anos eu tinha? Quatro? A tia resolveu fazer uma brincadeirinha educativa. Deveríamos fechar os olhos e ela traria alguma coisa em suas mãos próxima ao nosso nariz. Então, precisaríamos adivinhar de que se tratava. Talvez eu tenha pensado que se acertasse, ganharia um prêmio. Talvez quisesse apenas poder dizer a resposta certa. Ou talvez eu não soubesse da existência de aromas como instrumento de identificação e não estivesse com vontade de passar vergonha. Ou, não sei, se por ignorância ou medo, espiei com o cantinho dos olhos e vi em suas mãos um pedacinho de pão. Então, menti.

- É um pão! - falei com total segurança. Provavelmente o pedacinho já tivesse passado por várias crianças e nenhuma resposta certa havia sido obtida até então. As tias aplaudiram e se admiraram. As crianças celebraram. Eu não entendia o propósito da brincadeira.

- Mas você não olhou não, né? - ela perguntou enfim, só para se certificar. Eu não queria ficar de castigo, então mais uma vez menti.

- Não, não... - provavelmente baixei os olhos e fiz a maior cara de bolachas Traquinas do mundo. Mas, ficou por isso mesmo. Ninguém descobriu a mentira e, de fato, ganhei o pedacinho de pão para comer. Ganhei o prestígio de ter sido a primeira criança de todo o jardim 2 a acertar o que havia nas mãos da professora. 

Não sei o motivo, mas nunca mais esqueci desse momento. Quando penso a respeito, percebo que bem no fundo, no subconsciente mais próximo do inconsciente que existe, creio que culpo aquele único momento, a decisão feita aos quatro anos de idade, pelo fato de hoje ter um olfato extremamente fraco. Sinto falta de poder elogiar sinceramente um perfume quando alguma amiga próxima aproxima o pulso do meu nariz e fala empolgada "Sente isso, que ma-ra-vi-lho-so". Sinto falta de poder dizer, como minha mãe, que a carne no forno está pronta porque "já começou a cheirar".

Provavelmente é bobagem, provavelmente o que aconteceu foi o caminho contrário: 'menti, pois não sentia cheiro', ao invés de 'não sinto cheiro, pois menti'. Mas a sensação continua sendo a de que a mamãe pássaro me jogou fora do ninho para voar e ao invés de bater as asas, abri um páraquedas. Um único momento, uma decisão aos quatro anos de idade, sem significado, não-premeditada, provavelmente não tão grave, mudou a forma que me senti a respeito de mim mesma, talvez de forma mais profunda do que eu perceba, e mostrou-me o significado de culpa.

Aos 11 anos de idade, minhas colegas de classe resolveram me mostrar o quanto era cool roubar os pirulitos em formato de coração de 15 centavos do carrinho de pipoca que um senhor trazia todos os dias para a nossa escola de 6 mil alunos. A muvuca era tanta ao redor do vendedor, que ele mal podia controlar quem havia pago ou não e todos simplesmente iam enfiando a mão no balde de plástico transparente e enfiando uma quantidade nos bolsos. 

Fui desafiada. Elas riram. Todos faziam isso, afinal. Eu provavelmente não sabia, porque era nova na escola, mas isso fazia parte de ser uma estudante naquele local. E fomos, as três, aproveitando-se da bagunça, já pegando alguns e saindo andando, como legítimas compradoras. Eu não acreditei. Conseguimos pirulitos de graça e ninguém reclamara! A culpa apertou novamente, mas foi superada pela empolgação de vencer, conquistar, fazer o proibído. O pirulito era gostoso, mas, mais do que isso, ele era um trófeu. Eu o desfrutei, sentindo-me uma bad girl. Meu moletom, com o monograma do Colégio Batista, mais podia ser uma jaqueta de couro com o logo do Hell's Angels ou algo assim. Fizemos isso mais umas duas ou três vezes, até o dia que elas faltaram e eu, entendiada, resolvi fazê-lo pela primeira vez sozinha. O local estava praticamente vazio na hora, o que significava que o vendedor não teria distrações desta vez. Não seria muito inteligente tentar um golpe. Mas a tentação era mais forte do que eu e do que a inteligência. Eu precisava conseguir sozinha. Fui confiantemente até o local, peguei um pirulito e rapidamente virei as costas indo embora. Ouvi o vendedor atrás gritando: "Ei, ei! MENINA! Você aí! Ei! Ei!". Minhas colegas provavelmente voltariam e com o rosto mais liso do mundo afirmariam que pagaram pelo que pegaram. Já eu sabia que meu rosto ficaria vermelho, os olhos lacrimejariam diante da mentira e da vergonha. Segui reto e o senhor desistiu de me perseguir. Saí com o rosto queimando e profundamente desperta para o fato de que a empolgação da conquista não vale a humilhação de ser pega no ato. De repente, sequer gostei mais de pirulito. Mesmo assim, quis comprar alguns legitimamente nos dias seguintes, para compensar pelo crime. No entanto, não tive coragem de dar as caras e arriscar ser reconhecida pelo senhor.

A culpa não tem a ver com a maldade escondida num ato. Ela não tem a ver com a consequência ou dano causada ao outro. E definitivamente não tem a ver com quanto tempo se passou desde o ocorrido ou não. Claro, hoje podemos dar risadas dessas histórias e eu posso contá-las cientes que, depois de tanto tempo, provavelmente não haverão consequências para a confissão. Mas a culpa, grande ou pequeno o crime, nos persegue. A culpa por ter humilhado aquela menina na quarta série. Ou batido numa prima aos 9 anos de idade. Ou mentido para a melhor amiguinha, dizendo que conhecia pessoalmente o Peter Pan e a Sininho e toda a turma Disney e que ela não os via porque "só os inteligentes podem vê-los". 

Por isso, posso entender o sentimento por trás do filme "Desejo e Reparação". Uma escolha simples, talvez até uma escolha acertada dentro de uma perspectiva limitada. E que consequências!

Sim, existe redenção. Sim, existe perdão para todas as coisas em Deus. Mas o desejo por confissão e reparação, mesmo que impossível, continua a movimentar as entranhas. Talvez não por não aceitarmos o perdão divino, mas justamente porque o recebemos. Um presente tão imerecido nos constrange. O apostólo Paulo nunca deixou de falar de como perseguiu os cristãos antes de se tornar ele mesmo um. Nunca deixou de se considerar o pior dos pecadores, mesmo quando todas as coisas se fizeram novas. Sim, a culpa é possívelmente até mesmo mais um presente de Deus para que ansiemos e busquemos pela reconciliação e pela quitação de dívidas. A alternativa, o viver sem culpa, é considerada uma doença, chamada de psicopatia. As pessoas que sofrem desse mal muitas vezes sequer são consideradas humanas e muitos advocam que crimonosos psicopatas deveriam receber pena de morte. Daí pode-se concluir que a  culpa é parte do que nos faz humanos. Talvez seja a compaixão o outro lado da moeda. Nos omitirmos diante do sofrimento dos outros tem o mesmo efeito nos nossos corações que sermos os próprios agressores. 

Esta foi minha confissão. Perdão, professora, eu não senti de verdade o cheiro do pãozinho, eu menti. Senhor vendedor, eu gostaria de dar-lhe os 45 centavos que devo pelos pirulitos. Obrigada por não ter me perseguido naquele dia. Perdão a todos que já ofendi, magoei, abandonei, maltratei, bati, enganei ou, de alguma forma, traumatizei. Eu mudaria tudo, se pudesse.

Você se sente culpado(a) por alguma bobagem que fez no passado?