Ou Nostalgia sem causa
Ou Murmúrio incompreensível
Há dois dias que temos névoa todo o tempo na cidadezinha onde moro e estudo. Sempre que olhamos para fora, penso na cegueira leitosa de Saramago. Sombras de árvores, o brilho de farol próximo dos carros e apenas puro branco onde sei que deveriam estar casas e jardins e cercados e o fim da rua. Eu sei, porque todas as manhãs faço um percurso de 10 minutos de bicicleta até o seminário, que sair lá fora significa inevitavelmente se deixar totalmente molhar, o frio penetrar tão fundo que nenhum excesso de tremedeira consegue expulsá-lo e sentir em todos os ossos os fantasmas de cãibras acumulados nos anos de existência.
Aqui dentro, na sala de aula aquecida a todo tempo e seca de doer as narinas, um professor explica em tom monótono e em alemão a ciência da cibernética, que surpreendente nada tem a ver com computadores e tecnologia. Ele esclaresce que vem do grego e implica a arte de guiar, liderar, pilotar e nisso eu presto atenção. Algumas palavras chaves saltam do discurso: organização, calendário, vida privada, trabalho, horas marcadas... Mas a maior parte do tempo estou na névoa, vendo-a dançar com o vento, despertar sonhos de mistério e mágica e poemas antigos. O que estou fazendo aqui? Na Alemanha, onde números são privilegiados em relação à palavras, onde música é matemática, onde todas as matérias, em especial as humanas, são exatas. A métrica deve ser seguida sob pena metafórica de ostracismo, estrangulamento e morte. Nessa ordem e quem não seguir a ordem corre risco metafórico de ostracismo, estrangulamento e morte. Nessa ordem. E quem não seguir a ordem...
Estou sendo injusta? Afinal, foi desse país que saíram os contos de fada dos Grimm. O estímulo suícida de Goethe. É aqui que a nevóa dura dias, as árvores são metamorfósicas e os bosques assombrados. Aqui que as caminhadas, como Anne Shirley de Green Gables diria, oferecem tanto espaço para a imaginação. Como a Alemanha se tornou tão... alemã? Por que a vida, a filosofia e as poesias têm que ser calculadas tão milimetricamente? Saudade de pintar fora do quadrado, saudade de não pensar sistematicamente, saudade da palavra saudade.
Então penso no Brasil, não sabia antes de viver aqui, tão sem lei, espontâneo, divertido, imprevisível e desesperançosamente irrecuperável. Aqui vivemos sob o big brother, lá em um mundo selvagem. Aqui vivemos sob o fardo das regras, lá sob o fardo do caos.
Só há ordem e segurança onde há intenção, onde as linhas são bem delineadas e as fórmulas estritamente utilizadas. Mas só há humanidade onde há compaixão e a compaixão está nas excessões, no amor pelo fraco, no perdão para o errado e na aceitação do imperfeito.
Névoa de um lado e cibernética do outro. Não sei o que isso significa ou onde está o equilíbrio ideal. Se a vida tem que ser um quadrado, talvez possamos ser caóticos e imprevisíveis dentro deste limite ou, por outro lado, sistemáticos e monótonos fora dele. Ou, quem sabe, e aqui sonho novamente, olhando janela afora, a névoa se torne tão densa que sequer enxergamos mais um quadrado.
Então eu penso em Tewje de Anatevka e fico com medo de que sem o quadrado fiquemos tão instáveis quanto um violinista no telhado. E, no telhado, a névoa definitivamente não ajuda.