Sobre civilidade e civilização

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Run by Addison Road on Grooveshark

Latte Macchiatto numa mão, um pretzel morno com manteiga na outra. Pavimentação sob meus pés. Buzinas de carro, arrancar de motores, passos de transeuntes impassíveis, o ranger agudo do trilho enquanto o bonde passa. Uma ventania e o cachecol da Benetton serpenteia, meus braços se arrepiam, meus passos se apressam. De um lado, a pirâmide tão conhecida, bem no centro do centro da cidade de Karlsruhe. Do outro lado, as vitrines, os anúncios, o castelo, a organização das árvores no jardim. Cercada de prédios, normalidade, tecnologia e civilização. Mas algo dentro de mim clama por algo. . . épico. 

Ele colocou a eternidade em nossos corações. O coração não foi feito para ruas de paralelepípedo e tickets em máquinas automatizadas. Ele não foi feito para protetores de copo e palmilhas termoisolantes. Ele não foi feito para tanta segurança, tanto hábito, tanta educação, tanta regulamentação, tanto comportamento pré-programado. O épico clama dentro de mim. E, ao menos desta vez, extraordinariamente, respondo.

Lanço fora o copo de plástico, junto com seu protetor e o guardanapo do pretzel. E corro. Não uma corrida civilizada, daquelas que costumamos ver em propagandas da Nike ou entre os atrasados para pegar o bonde. Corro uma corrida desesperada, de início lenta e, de repente, acelerada até o ponto em que as testemunhas se viram preocupadas para verificar por que manada desembestada estou sendo perseguida. Cada passo impactante doem os ossos mal-acostumados, as juntas queimam e contraem-se teimosamente, os pulmões reclamam, mas não paro. Por que corro? Ouço em cada impacto dos meus pés que estou atrás do épico, da aventura, dos sonhos inatingíveis, do passado irrecuperável, de tudo aquilo que não alcancei porque não lutei, das lágrimas jamais derramadas, da alma diluída e esmaltada pelo excesso de civilização, do grito engolido, das risadas educadas, do tempo mal investido, do perdão nunca pedido, das pessoas que feri, da verdade não dita, do amor, do amor que não soube dar tão inteiro, tão completo, porque parecia estúpido e infantil e tão desajustado. 

Corro desesperadamente porque não há lugar para o épico aqui neste bairro e, portanto, não há lugar para corações onde a eternidade foi colocada. Enquanto vivemos vidas regradas entre quatro paredes artificialmente climatizadas, discutimos as novas tendências da moda e compartilhamos fotos de gatinhos pela internet, os tambores rufam, o céu se desenrola como papiro, o chão treme, os alicerces se deslocam, o teto brilhando de chuva está a despencar e o épico nos chama por nome a plenos pulmões. A eternidade comanda agora que gritemos, que lutemos, que suemos, que choremos, que corramos, que desistamos deste conforto, em prol de tudo que é certo, tudo que é puro, tudo que é belo e justo. Existe o momento de não hesitar. É o momento de ir all in.

Então, corro. Debaixo do sol, da neve e da chuva, em meio ao mar de rostos indiferentes que me cercam.

Corro até as extremidades da terra, até os limites desta cidade, o fim da carreira proposta. No alto daquela encosta, sem saída e sem retorno, grito o grito rouco, guardado por décadas, já que não posso mais correr. E em resposta, o eco grita duas, três, até quatro vezes o meu esforço. As lágrimas caem e, finalmente sinto meu coração esticando-se de abarrotado de perfeito amor e perfeita alegria e profunda dor por toda a civilização assim tão pálida e tão civilizada. O épico me venceu. E com Ele, venci o mundo.