A Menina no Espelho

As pessoas não deviam deixar espelhos pendurados nos quartos, nem celulares sem senha por cima da mesa ou Facebooks logados.

Impossível deixar de olhar-se em um longo espelho a pender da parede numa linda tarde de verão ou numa manhã fresca, após o despertar.

Das profundezas da cabeceira, Isabela vê refletido em seu espelho não somente o lençol desbotado, amassado como um guardanapo usado sobre a cama e os pôsteres de cantores estrangeiros presos por tachinhas na parede, como também sua penteadeira, com todos os itens que lhe tem mais valor no momento: bijuterias velhas que perteceram a sua mãe, brincos de cristal, presentes de um homem cujo nome deve permanecer no esquecimento, maquiagens, algumas de camelô, outras caras demais para o seu salário, pincéis, cremes para todas as funções, lenços, presilhas, tiaras, chapéus, chapinha, sprays, apetrechos e outras tranqueirinhas mais, sem as quais não poderia viver.

A verdade é que Isabela tinha um espelho, mas no fundo não queria se ver. Afinal, de que outra forma deve uma pessoa entender o por quê de Isabela esforçar-se tanto para se esconder por trás de toda aquela parafernália?

Isabela percebe isso e seu sorriso esticado murcha devagarzinho no reflexo. O mundo parece ondular das beiradas ao centro, como a busca do foco de uma Cybershot velha. Para todos os padrões, Isabela é linda, natural e única. Mas, algo falta.

Ela apanha de uma caixinha de jóias com o dourado descascando um batom de capa roxa da Avon. Tira a tampinha com um clique e desliza os dedos em círculo no fundo, fazendo florescer o vermelho sangue do bastão para fora. Não é a si que Isabela quer ver, zumbe a verdade em seus ouvidos. Então, ela photoshopa a realidade, acrescenta constraste às suas feições, manipula as formas através de cores, torna-se uma artesã de si. Ver-se por quê? Essa coisa tediosa que todos os dias a encara.


O reflexo denuncia a verdade: a cama amarrotada com espaço para apenas um, a decoração exclusivamente feminina, o tom azul celeste de solidão a soprar baforadas frias de debaixo dos móveis. Isabela quer ser amada.

Mas, não, uma olhada mais cuidadosa no espelho e percebe-se que o ambiente do quarto não é imputável de culpa pelo desprezo de Isabela por si. Teias sobre teias e pó quase o camuflam, mas ali, ao pé da cama, encontra-se um objeto massudo e pesaroso em forma de baú. A luz se curva em direção a ele, com a gravidade de um buraco negro, atraindo e engolindo toda a saturação do quarto, deixando-o com uma leve sensação de violação em tons pastel e amarelados, uma falta de contraste acidental, uma palidez insossa em Isabela.

Alguém abrisse o baú, certamente que o ouviria ranger teimoso as dobradiças mal-utilizadas, talvez um breve sufocamento e tosse numa fumaça de antiguidade antes de finalmente poder focalizar-se em seu conteúdo precioso. O que guarda no baú, Isabela? Que segredos lhe aquecem os pés pela manhã, que fantasmas lhe escapam e lhe insonam a noite?

Isabela mancha os lábios de cor e suspira. Já faz muito tempo desde que tocou no baú empoeirado. Um pequeno pote redondo e negro com as letras M, A e C em maiúsculas no tampo transparente agora lhe pesam entre os dedos da mão direita. Ela abre a tampinha e espalha com fervor o pigmento bronze brilhante sobre as pálpebras.

Já faz muito tempo, de fato. Mas, é justamente ao redor daquele objeto, ou do que quer que esteja guardado nele, que paira a razão de Isabela não querer se ver no espelho. Ela desvia o olhar de si e o desliza para aquele canto. O mundo todo vai desfocando ao redor, deixando apenas um brilho amarelado e doentio sobre a madeira velha. O mundo começa a pulsar ansioso, erguendo a temperatura da cor até o vermelho-claro.

Mas, Isabela só pode encará-lo prolongadamente quando não é Isabela. Isabela quer ver no espelho alguém, não como ela, mas interessante, feliz, proprietária de quartos cheios de cores e aromas e emoções deliciosas. Quem ela quer ver no espelho é aquela menina de capa de revista.

O espelho borra, dobra e se desdobra, à medida que Isabela apaixonadamente se esconde por trás do disfarce de cores, sombras e formas. Nada sobra, nem um centímetro de pele exposta e crua é sua. Isabela sorri, porque não mais se enxerga no espelho.

Então com passos firmes se afasta, ficando cada vez mais pequenina no reflexo e se agacha diante do baú abandonado. Tantas coisas guardou com carinho ali no passado. O espelho quase se inclina de curiosidade para ver e o mundo se inclina junto. Isabela se segura na perna da cama para não escorregar e se ajusta desajeitadamente à nova posição do quarto.

O espelho cria uma leve curva convexa para enxergá-la mais de perto, quase com a qualidade de uma lente de aumento, e qual não é sua surpresa, quando Isabela, de repente, mais magra e mais alta, esticada e curva ao centro, finalmente faz ranger as dobradiças do baú. Após a fumaça de antiguidade se dissipar, o próprio ar paralisa-se com o choque de que dentro do baú não há absolutamente nada.

Isabela primeiro grita, depois suspira. Observa no reflexo turvo de lágrimas no espelho seu rosto contorcido de dor, mas contorce-o novamente com os dedos para criar um falso sorriso. "Why so serious?", ela sussurra com os lábios vermelhos e tronchos.

Foi alertada há muito tempo sobre o perigo de guardar junto a suas preciosidades as traças de ressentimento. Agora sobrou-lhe a essência do que se tornara. Totalmente vazia. Não amava, não sonhava e não pensava. Só era tinta, só era cor.

Crescendo novamente em direção ao espelho, sorri dolorosamente e limpa o rastro negro de água, sal e rímel em suas bochechas. Mas, não, não é ela, não é Isabela. É apenas a menina da capa da revista no espelho. E enquanto ela for só isso, tudo bem.

Mas, que pena, que triste para ela que o espelho toda noite a testemunha desbotar e desmanchar o disfarce, tornando-se novamente a pobre e pálida Isabela.

As pessoas realmente não deviam deixar espelhos pendurados nos quartos.



Sobre A Menina no Espelho

Falar qual a fonte de inspiração para um texto que escrevo sempre é um pouco embaraçoso, especialmente quando essa fonte de inspiração é a Virginia Woolf, já que inevitavelmente o texto original é anos-luz acima desse aqui, tanto em qualidade de entretenimento quanto em genialidade. Tenho a sensação de que dizer que me inspirei na Virginia é como uma criança começando a aprender a desenhar falar que se inspirou em quadros do Monet. Inconcebível.

Inspirado em quadros do Monet

Mas, enfim, por amor à honestidade, o conto A Mulher no Espelho foi o que me inspirou para esse texto. É um dos meus favoritos e recomendo veementemente sua leitura. :)