A idolatria da palavra e do espelho


Quando eu era adolescente, não tinha coragem de usar coisas muito fofas ou valiosas que comprava e ganhava. Papéis de carta, bloquinhos, diários, agendas, joias, fronhas de seda, sapatos, cosméticos… o que fosse. Era com muito desgosto que, anos depois, descobria esquecido em alguma gaveta aquilo que guardara, com tanto carinho, amarelado pelo tempo, vencido, roído, esfarelado, envelhecido, amassado, estragado, inutilizável. Acho que é uma lição que todos eventualmente aprendemos na vida: nada dura. A tentativa de conservação é praticamente vã. É segurar água entre os dedos. Assim como o tempo.

As vezes que mudei de cidade foram vezes que precisei aprender a deixar para trás: pessoas, bens materiais e coisas de valor sentimental. E a conseqüência transitiva de quem perde quase tudo algumas vezes é a tendência para um dos extremos: ou apega-se demais ao que vier a seguir (como a relação com a comida de quem passou fome) ou nunca mais se apega a nada. Ou, o mais comum talvez, uma manifestação das duas tendências em relação a diferentes objetos: não apegar-se mais a pessoas, mas apegar-se demais a posses.

Tem até sua lógica. Não se pode ter controle sobre pessoas. Elas vêm e vão, elas amam, elas ferem brutalmente. Objetos estão mais ou menos sempre lá. São seus servos, seus lembretes, seu domínio, suas testemunhas. Há até quem queira ser enterrado com seus mementos. O Instagram vive povoado por fotos nostálgicas das mais recentes aquisições quase como forma de definição da própria identidade. E não é raro ver em redes sociais figurinhas com declarações anti-sociais, mas ainda assim cool do tipo: “Gosto mais de livros do que de pessoas”. Livros, então, são uma história à parte. Aí não se trata de materialismo e, sim, de universos. Histórias. Entretenimento. Compreensão da natureza humana. Mistérios desvendados. Emoções verdadeiras! Mesmo assim, quando vejo pessoas se declararem mais apegadas a livros do que a seres humanos, sinto vontade de desejar algo entre “melhoras” e “meus pêsames”. Pois, que triste é ser o maior especialista em natureza humana através de romances e ser incapaz de reconhecer na pessoa diante de você a história mais complexa e fantástica já escrita. Emocionar-se com um livro, mas não chorar por alguém?

Esquecemos que só as pessoas têm a capacidade de ser eternas? Qual o sentido da palavra escrita se não para nos levar à ação, ao amor, a alcançar o próximo?

Acho que muita gente, assim como eu era em relação a meus objetos fofos e valiosos, tem medo de usar… a si próprios. Somos valiosos demais para gastar. Precisamos nos conservar, a maior quantidade de tempo possível, jovens, saudáveis, intactos, lisos, puros, intocáveis. Mesmo sabendo que o envelhecimento, a perda, é inevitável. Afinal, por que esse medo de consumirmo-nos em amor, entregar-nos em sacrifício por outros, perder noites embelezadoras de sono e o conforto da segurança de quatro paredes? Queremos mesmo ser papéis de carta engavetados, esquecidos, corpos inutilizados, corações enrijecidos e uma alma enferrujada pela falta de uso? Quanto tempo mais de beleza e energia ganharemos com esse investimento tão árduo em nós mesmos? Fará diferença, no final?

Se Deus quisesse apenas beleza, teria nos criado estátuas ou belas pinturas. Mas, criou-nos assim, capazes de exclamar “este, sim, é carne da minha carne e sangue do meu sangue”! Por cinco anos a mais sem rugas, deixei de amar? Pobre de mim. Pra viver sem olheiras, deixei de cuidar? Desperdício que fui. Por auto-preservação e auto-aprimoramento, amei apenas a arte, a cultura, os livros, fotografias, pinturas e esqueci os que estavam ao meu lado? Vergonha!

Que ganhei com a admiração? Que ganhei com o conhecimento acumulado e guardado? Que ganhei em estar sempre na última moda?

Quero ter as marcas da luta no final da batalha. “Vê, esta cicatriz? Fui ferida por amor. E esta ruga? Foi uma preocupação bem justificada. Estes cabelos brancos? A coroa de vitória de uma vida bem aproveitada. Não há nada novo em mim e essa é minha glória.” A mesma glória de um livro: enfim páginas amassadas e frágeis pelo uso excessivo e não apenas deixar de existir sem nunca ter sido lido.

E se, no final de tudo, apenas por escrever palavras bonitas em um blog ou rede social, senti que cumpri meu dever e me der por satisfeita? Melhoras… ou melhor, meus pêsames.