Até a lua

Crédito/foto: Mario Sorrenti - Jil Sander

— Eu te amo mais do que tudo. — ela sorriu, comprimindo as pálpebras em dois pequenos riscos inchados, vermelhos e molhados, quase que escondendo totalmente as íris de seus olhos. — Soa tão estúpido, falando assim agora. Coisa que se ouve em filme. — riu uma risada rouca, engasgada, até tossir.

— Eu também te amo. — concedi graciosamente. Passo a passo me aproximava dela, como alguém se aproxima de um animalzinho assustado. Meus olhos não se afastavam do metal.

— Você não entende. — sorriu novamente, lágrimas e catarro empoçando na curva dos lábios esticados. Sorrisos demais para uma situação como essa. — E não é nem sua culpa. Você não pode fazer nada e eu não posso fazer nada, senão te amar mais. — E se moveu.

A luz viaja mais rápido do que o som, mas os olhos possivelmente trabalham mais lentamente do que os ouvidos.

A tentativa de harmonização entre essas duas afirmativas justificaria a falta de sincronia nas múltiplas versões deste momento em minha mente. Uma vez, a parede salpicada de cérebro e sangue e só depois o barulho ensurdecedor de uma explosão. Na outra, o clique do gatilho e, quase imediatamente, o tombo dramático de seu corpo, quase propositado, em meus braços. Seus olhos já vazios pela morte. Em outra ainda, apenas o cheiro de pólvora e sangue, antes do tiro, antes da decisão, antes do olhar de despedida que ela me lançou com sua última declaração de amor. E no final, um eco: será possível que, em algum momento, ela sussurrou “até a lua?”

Ela nunca pôde aceitar. Eu nunca pude aceitar. Ficamos os dois de joelhos: ela tornando-se fria e rígida, eu ardendo de desespero, de culpa, de dúvida, de derrota, de vida (a minha) e morte (a dela) imerecidas. Os dois combinando nas manchas de seu sangue descarrilhado. Por que me amou assim? O que eu fiz, o que eu fiz que a aprisionou para sempre?

Nenhum ser humano é digno de segurar em suas próprias mãos a força da vida de outrem. Deus, Deus, o que eu fiz? Balançando o corpo dela com o meu, gritei aos céus:

— Me perdoe, por favor, me perdoe.

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Acho que ainda estava bêbado da noite anterior, porque a ressaca até o momento não chegara como esperado.

Estava cambaleando pela rua, o sol ainda não tinha se levantado por inteiro, quando a vi pela primeira vez.

Parecia nervosa, balançando o peso do corpo de um lado para o outro, e olhava diretamente para mim. Assim que cheguei à conclusão que a acharia bonita mesmo se estivesse sóbrio, me aproximei de mansinho.

— Posso ajudá-la, senhora? — de uma forma que me pareceu respeitosa e, ao mesmo tempo, um flerte.

— Você tem ideia do quanto eu me preocupei? — com uma voz exausta e derrotada. Vulnerável. Bom.

— A senhora quer conversar a respeito? Tenho dois bons ombros para chorar. — sentia que, no fundo, não era uma boa hora para cantadas, mas saiu de mim sem que eu calculasse.

— Você tá bêbado? — os olhos dela se abriram ao mesmo tempo horrorizados e irados.

— Não…— menti, mas, percebendo que o álcool era uma boa desculpa para meu comportamento impertinente, confessei: — Talvez um pouquinho.

Ela respirou fundo e suspirou de olhos fechados. Lágrimas começaram a rolar de seus olhos, escorrendo um fio preto de maquiagem nas bochechas pálidas. Meu papel era cômico, o dela era trágico. Por último, olhou ao redor e perguntou com a voz rouca:

— Onde você deixou os meninos?

Calculei que ela me vira no bar antes com os caras e o problema dela era com um deles. Aí a história mudou. Se ela era a mina de um dos meus amigos, ela era off-limits, o que, de certa forma, só a deixou mais atraente.

— Sei lá, meu, foram para casa? Dormi aí, não sei onde tão.

Os lábios dela tremeram e as lágrimas começaram a cair mais intensamente do que antes.

— Fala que você tá brincando… — começou a gritar e partiu contra mim, esmurrando com toda força, não muita, meu peito. Perdi um pouco o equilíbrio e a agarrei com facilidade para impedi-la de tentar continuar a violência.

— Ôrra, moça. Calma aê. — apertando meus braços ao redor dela. Os gritos foram esmorecendo e ela pareceu tomar a prevenção mais como um abraço, porque encostou a cabeça no meu ombro enquanto chorava.

— Onde eles estão? Fala pra mim, onde eles tão? Por favor… por favor… — quase sussurrava. O comportamento era tão errático que só podia ser louca. Mas, algo nela era tão lastimável que não tive coragem de simplesmente deixá-la lá. E havia tanta intimidade na forma que se rendia totalmente a mim que eu mesmo me senti no meu pseudoconsolo, consolado.

Olhando para trás agora, vejo que aquele foi o primeiro alerta. Devia ter ido embora, devia ter saído e nunca olhado para trás. Será que isso a manteria em vida?

Quando consegui que se acalmasse, a convenci de me acompanhar até o bar onde poderíamos conversar. Eu a deixei no balcão para ir ao banheiro. Quando voltei, não estava mais lá.

Só a vi dias depois e, então, estava sóbrio até demais. Quando ergui os olhos do meu computador, ela simplesmente estava ali em pé, como se sempre estivesse, na entrada do meu cubículo no serviço. Não sei como poderia ter me achado, pois nunca dissemos sequer nossos nomes um ao outro. Eu deveria ficar assustado, mas, desta vez, ela parecia quase controlada, embora ainda, no fundo dos olhos, ligeiramente perturbada. Era realmente linda, mesmo sem efeito do álcool, apesar de um pouco magra demais. A magreza era acentuada pelo vestido vários números grande demais para ela.

Mas, toda sua aparência, parecia, de alguma forma, intencional: seria talvez uma nova moda? Nunca entendi mesmo de moda. Última vez que me preocupei com essas coisas foi quando me interessei por minha primeira namorada lá no colegial. E, mesmo então, meu conceito de moda era apenas lembrar que jeans rasgados eram, por qualquer motivo, mais estilosos que jeans normais.

Por que deveria ter medo? Era pequena e vulnerável. O sorriso tímido e cansado. Ela só queria me ver, disse. Nem perguntei como me encontrara. Contra todo bom senso, convidei-a para tomar um café na lanchonete do prédio, depois do expediente.

 Eu era um cavalheiro. E ela era linda. Os lábios pareceram tremer por um segundo, antes de ela aceitar o convite e sorrir com os olhos caídos.

Na lanchonete, não aceitou comer nada e, para não fazer feio, por um momento, cogitei fazer o mesmo. Mas, meu estômago roncou, então, ao invés disso pedi quase o menu inteiro. Ela ficou ali, só me observando comer, com os olhos tristes e, ao mesmo tempo, brilhantes. Eu me ocupei mastigando e a observando me observar. Finalmente, disparou:

— Você nem sequer lembra de mim, não é?

Terminei de mastigar, tomei um gole de suco para ajudar o hamburger a descer, antes de responder:

— Você é a moça que desapareceu no bar naquele dia.

Ela assentiu com a cabeça.

— E antes disso? Aposto que nem lembra de sequer já ter me visto.

Pego no flagra. Engasguei de leve e tentei disfarçar.

— Lógico que lembro. Lá… — ergui um braço em direção a algum lugar imaginário que tentava inventar na hora. Concluí: — Você estava com os meninos. É, você estava com os meninos.

Ela ergueu uma sobrancelha e piscou. Depois, balançou a cabeça.

— Quando você fala ‘meninos’, de quem está falando? — perguntou. Eu ri. Ou ela tinha péssima memória ou estava brincando comigo.

— Esqueceu tão rápido assim deles? Parecia bem preocupada da última vez. — provoquei.

Os olhos dela se encheram de lágrimas, concluí que pela lembrança dolorosa. Se ela era namorada de um deles, provavelmente não deveríamos estar aqui conversando. Endireitei as costas e tentei tomar uma postura mais séria, mas ela esticou o braço na mesa e alcançou minha mão com a sua. Era tão quente e macia que não consegui recusar o toque. Sem pensar, entrelacei meus dedos nos seus. Parecia, de alguma forma, o certo a se fazer no momento.

Ela sorriu com aquele sorriso triste que estava se tornando para mim tão familiar. Fiquei a imaginar como seria seu rosto se estivesse realmente feliz e cheguei à conclusão de que seria a criatura mais linda do universo. Cheguei até mesmo a pensar, sóbrio e alimentado como estava, de que seria capaz de fazer qualquer coisa para fazer com que isso acontecesse. O pensamento foi interrompido pela sua voz doce e quebrada:

— Vem embora comigo. — implorou, os olhos embaciados e cheios de esperança, como uma criança.
Pedi a conta, paguei e simplesmente a segui.

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— Eu te amo mais do que tudo. — senti seu sussurro quente no ouvido antes de perceber que estava despertando. Ele se arrastou no lençol, afastando os cobertores aos pontapés, para aproximar o corpo do meu. Por último, passou o braço ao redor do meu corpo e o puxou para mais perto de si.

— Eu te amo mais. — virei para ele e o beijei com cuidado para não espalhar mau hálito matutino. — Será que eles já acordaram? — semifalei, semibocejei sem querer no rosto dele.

— Acabei de voltar de lá. Ainda estão dormindo.

— Bom. Assim posso te curtir um pouco mais. — disse ao mesmo tempo me espreguiçando e sorrindo.

— Feliz sete anos. — soltou de repente.

— Não! Eu queria falar primeiro… — resmunguei brincando e mordi o lábio inferior, tentando ser provocante. Ele riu.

— Perdão. Retiro o que disse. — num tom intencionalmente patético.

— Feliz sete anos. — e beijei seus lábios com vontade.

Como sete anos passaram rápido! E lento, ao mesmo tempo. Uma vida inteira—ou cinco, para ser exata—em um casamento. Minha nova vida com ele, a vida nova dele comigo e nossos três filhos. Em sete anos: seis números a mais no tamanho das calças, rugas onde nunca houveram e a primeira vez que precisei pintar meu cabelo. Em sete anos: intimidade mágica e grotesca, dependência, desejo, monotonia, tragédia, paixão, medo, velas, narizes escorrendo e fraldas sujas.

Deus, como pode haver tanta história em sete anos? Minha vida é a dele, a dele é a minha, não existe mais linha que nos separe. Separação significaria destruição. Seríamos, afinal, capazes de, como sugeriu o rei Salomão, cortar nossos filhos ao meio? Nossos bens? Nossas almas?

— Ah, estamos sob ataque! — eu o ouvi gritar divertido antes de sentir o corpinho de um dos pequenos pulando duro sobre o meu. Estava ficando pesado, ao mesmo tempo que ossudo. Os dois mais novos seguiram-no. — Ah! — gemeu debaixo de pulos dos pézinhos sobre nós.

— Meninos, hoje é um dia muito especial. — ele anunciou, sentando-se na cama e acertando o do meio de leve com o travesseiro. — O que daremos de presente para a mamãe? — pulando da cama e jogando cobertores por cima de mim e do mais novo. O mais novo, por sua vez, se desvencilhou rapidamente e gritou:

— Um foguete! — e saltou de novo sobre mim. Ri da criatividade. Criança tem cada uma.

— Um foguete? — falei num tom agudo, afetando surpresa. — E o que vou fazer com um foguete? — consegui, não sei como, agarrar os três com um braço só e derrubá-los na cama. Assim que superaram o golpe um deles começou:

— Viajar… — e o mais novo completou: — …até a lua!

— Tá, tá, tá… — disse meu marido arrancando dois deles da cama e depositando-os em pé no chão. — Hoje à noite, a mamãe e eu vamos viajar até a lua, então vocês vão se comportar direitinho na casa da vovó, ouviram?

O mais novo desceu com cuidado da cama sozinho e saiu correndo atrás dos dois que já estavam fora do quarto gritando e fazendo planos animados sobre o que fazer na casa da vovó.

— Hm… — murmurei, assim que verifiquei que estávamos sozinhos, me agarrando no lençol e deixando sensações de arrepios e calor percorrerem o meu corpo. — ‘Até a lua’ soa promissor. — ri, tirando meu cabelo emaranhado do rosto. Ele se abaixou, se apoiando nos punhos fechados e me deu um beijo na testa:

— ‘Até a lua’ tem seus perigos… — alertou, fingindo seriedade. Os cantos de sua boca sempre se inclinam pra baixo quando ele tenta não rir.

— ‘Até a lua’ soa muito divertido… — eu disse, puxando-o pelos ombros para baixo. Venci e ele caiu em cima de mim desajeitadamente, tirando todo o meu fôlego por alguns segundos. Ele tentou rolar para o outro lado da cama e ambos começamos a rir muito. Finalmente, olhou para mim e perguntou lentamente, dessa vez, quase sério mesmo:

— Tá feliz comigo? — tirando uma mecha de cabelo da frente do meu rosto.

— Muito. — e sorri as borboletas que estavam borbulhando em mim.

Ele sorriu exatamente da mesma forma. Parecia um espelho.


No espelho, eu via o reflexo do sol se pôr na janela atrás de mim. O dia perfeito para uma ocasião perfeita. Ele saiu, dizendo que depois de deixar as crianças, ia comprar macarrão no nosso único mercado, do outro lado da cidade. Eu sabia que era mentira. Estava preparando alguma surpresa, como sempre. Além de tudo, era o momento ideal para que eu me preparasse para a nossa noite. Ou, como ele disse, ‘a viagem até a lua’. Sorri, enquanto passava lápis kajal preto ao redor dos olhos. Era mais maquiagem do que eu costumava usar desde que casamos, mas queria parecer de novo a menina atraente que ele conheceu. Escolhi um vestido que acentuava bem as curvas e que não costumava usar justamente por causa disso. Ele sempre elogiou minhas curvas, ou melhor, sempre não—desde que as adquiri, depois do nascimento do segundo filho. Dizia que eu tinha virado ‘um mulherão’. Ri. Que vergonha. Que ele dissesse isso no escuro, sob as cobertas, só com o tato para delinear meus contornos. Mas ele me ver assim, tão exposta, em público, seria algo totalmente novo.

Até a lua, ele disse. Não conseguia parar de rir de empolgação e expectativa. Apertei os olhos e sussurrei:

— Até a lua.


O celular tocou, bem a tempo de me fazer evitar pensar pela primeira vez onde ele teria se metido.Olhei para o relógio e percebi que já devia, realmente, ter chegado há horas. Fiquei tão entretida com a arrumação—depilação, babyliss nos cabelos, fazer as unhas, maquiagem de capa de revista—que não me dei conta do horário.

— Oi, mor. Está difícil de achar o macarrão? — brinquei. Provavelmente estaria comprando flores, chocolate, alguma joia que estivesse de olho há tempos ou tentando conseguir o mais novo livro da minha escritora favorita.

— Me perdoe, por favor, me perdoe. — aos berros. O tom dele me deixou imediatamente apavorada.

— Amor, o que aconteceu? O que aconteceu?! — a pausa que ele tomou para responder me encheu de terror.

— Nada demais, calma. — parecendo, de repente, infinitamente mais calmo. — Minha mãe ligou. Um dos meninos está vomitando e chorando muito. Estou voltando para pegá-los.

Suspirei aliviada. E decepcionada. Poderíamos comemorar outro dia, é claro. O importante é que todos estavam vivos, mesmo que um deles estivesse doente. Nossa viagem para a lua seria adiada indefinidamente. Isto é, até conseguirmos folga novamente e minha sogra estivesse disponível para cuidar dos meninos.

Foi a última vez que ouvi dele.

Passei a noite em claro, esperando, desesperando, decidindo o que fazer. Nem no celular dele, nem no da minha sogra, nem no telefone fixo dela obtive resposta.

Naquele horário já não passariam mais ônibus para a cidade dela e o meu carro estava há semanas no conserto. Deveria ligar para hospitais? Para a polícia? Vai ver o carro quebrou. Vai ver foram assaltados e levaram os celulares. Será que sofreram um acidente? Lá para as 3 da manhã, decidi que precisava fazer alguma coisa e saí andando sozinha pela cidade, na esperança de avistar o carro ou ambulâncias ou sei lá. Na verdade, simplesmente não aguentava mais esperar sem fazer nada.

Duas horas depois, eu o avistei caminhando devagarzinho numa esquina, parecendo atônito. Solucei um minichoro de alívio e sorri, mas logo a seguir fui dominada pela ira. Ele está vivo, o maldito que me deixou tão preocupada! Quando percebi que me viu, finquei minha posição de braços cruzados, esperando que se aproximasse para poder brigar. Ele não se movia. A demora me fez bem. Tentei me concentrar no alívio de encontrá-lo e não na revolta. Precisava me controlar. Precisava dele, precisava desabafar com meu melhor amigo. Quando finalmente se aproximou, a primeira coisa que ele disse, e em tom de brincadeira, foi:

— Posso ajudá-la, senhora?


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Ele foi até o banheiro e me deixou esperando no balcão do bar. Não sabia ao certo se ele voltaria. Eu sabia que alguma coisa estava muito errada. A forma como me olhara. Lascivo e, ao mesmo tempo, como se nunca houvesse me visto. O vestido era bonito, mas não tanto para justificar essa reação. Não, era algo muito pior. Como se fosse outro homem, um desconhecido, um qualquer numa esquina. E bêbado! Ele nunca, nunca saía para beber. Não desde que casamos, ao menos. O que fez com as crianças? Ainda deviam estar na casa da minha sogra, é claro. Nem sequer saiu da cidade. Ficou bebendo… No dia do nosso aniversário de casamento. Depois de sete anos, você acha que conhece alguém tão bem que nada que ele possa fazer vai algum dia te surpreender. Bem, surpresa!

Misturado à ira e decepção extremas que eu sentia, um pressentimento pavoroso percorreu meu corpo e me deixou fria e tremendo. Ele não lembra de você. O pensamento veio do nada, mas, de repente, se tornou tão óbvio. Era uma doença aquilo. Minha sogra tinha mencionado só uma vez o motivo pelo qual meu marido não conhecia o pai:

— Ele se esqueceu de mim. — disse ela com um tom pesado de luto. Na época, pensei que estava falando num sentido figurado, que ele havia se desencantado, partido para outra, se entediado e ido embora. Só depois meu marido comentou de alguma doença mental da família, não sei ao certo. Não prestei muita atenção porque não gosto desses assuntos. Acho macabro.

Sentada no banquinho, eu não conseguia parar de balançar uma das pernas. Algo estava muito errado, eu sabia. E ele estava demorando demais no banheiro. Em algum momento, me convenci que não voltaria e, olhando no relógio, percebi que em 10 minutos o primeiro ônibus para a cidade da minha sogra partiria da estação mais próxima. Num impulso, peguei minha bolsa e parti sem olhar para trás.


Quando minha sogra me viu na porta de sua casa pareceu surpresa, mas não disse nada. Apenas escancarou a porta e acenou para que eu entrasse, sem fazer perguntas.

— Os meninos estão bem? — perguntei, assim que trancou a porta atrás de mim.

— Os meninos? — reagiu distraída. Esperei para que a pergunta fizesse sentido na mente dela porque às vezes ela era meio devagar. Meu marido dizia que era a idade. — Ah, os meninos! — bateu as palmas das mãos quando a ficha caiu. — Sim, estão muito bem. Na casa da Paula. — apontou na direção do fim da rua. — Você lembra da Paula. Vocês gostavam tanto de brincar juntas quando eram crianças. Pois, ela ainda mora lá.

Não consegui mais me controlar e comecei a chorar. Ela pareceu se agitar com isso.

— Seu filho não consegue se lembrar de mim. — funguei e ela empalideceu, mas permaneceu num silêncio incomodado, com tiques no rosto, como se quisesse falar alguma coisa e não sabia como. — Você disse que o pai dele foi embora porque se esqueceu.

Ela suspirou e pareceu envelhecer muitos anos enquanto olhava para mim, como se me analisasse. Sentou-se com dificuldades no sofá e num tom solene começou:

— Seu pai teve vários problemas. Às vezes inventava coisas que nunca aconteceram, às vezes esquecia tudo o que já tinha vivido. — ela deu de ombros e sorriu com os olhos caídos e brilhantes ao mesmo tempo. Depois de uma pausa, acrescentou: — Mas, sempre que eu pedia, voltava comigo para casa. — limpando a lente dos óculos. — Até o dia em que não voltou mais.

Ouvir aquilo, como uma sentença profética para o meu próprio marido, parecia um pesadelo. Meu melhor amigo, minha alma gêmea! Era uma realidade difícil demais para aceitar, para suportar. Resolvi perguntar o que eu mais temia:

— Algum dia ele voltou ao normal? Lembrou novamente da senhora?

Ela baixou os olhos ao chão e falou quase inaudível:

— Não.

Era tudo que eu precisava saber. Levantei imediatamente para partir, mas ela me implorou que ficasse mais alguns dias, pois não sabia quando havia de me ver novamente. Estranhei o jeito dela, mas imaginei que talvez ela simplesmente conseguiu enxergar nos meus olhos o que eu estava disposta a fazer, se o que ela me disse fosse verdade. O que é que eu estava disposta a fazer? Aí que me dei conta do quão desesperada estava. A ideia de nossos filhos receberem o desapego clandestino de braços que não conseguiam evitar envolvê-los.

A sanidade era só um fio, o fio que nos une e o fio que nos separa. Puxe uma pontinha, uma pontinha, e lá se vai desmanchando a cortina da minha vida… Pedaço a pedaço de lembrança num bocado de linha velha; o amor que compartilhamos, apenas um novelo. Foi aquele olhar de um estranho no rosto que tanto amei. A primeira beliscada. De repente, até nossos meninos, minha outra razão, pareceram desfiar e rasgar, de tão frágil e sem sentido que era qualquer memória sem o testemunha-chave da nossa existência. Insuportável viver, absurdo morrer; absurdo viver, morrer, então, imprescindível. Morrer, inevitável. Antes que o fio puxe a mim também. E essa é a única lógica que me domina.

Sim, talvez a estadia dos meus filhos na casa da vovó fosse durar mais tempo do que esperavam. Resolvi que seria bom dar uns últimos dias de despedida para eles e para a minha sogra, assim como teria meus últimos dias de despedida ao lado do meu marido esquecido.

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Ela me levou até um apartamento espaçoso e bem mobiliado. Falou para eu ficar à vontade, se quisesse poderia pendurar a jaqueta no hall de entrada e sumiu. Voltou se equilibrando em saltos altos com taças de vinho na mão. Depois de me entregar uma delas, ergueu a sua e brindou:
— Até a lua.

Acabamos por passar o final de semana inteiro juntos. Era loucura, da minha parte e da dela, mas tínhamos uma química que eu nunca tinha experimentado antes. Ela sempre com aquele jeito misterioso e melancólico, mas ao mesmo tempo apaixonado e feroz. Sorrisos sempre com olhos caídos que jamais se erguiam em felicidade completa. E eu bem que tentei. Tornei-me para ela o Don Juan, o herói dos sonhos, El Conquistador, o Marlon Brando, o Zorro. Beijei-lhe os pés, recitei-lhe sonetos e tentei dar-lhe prazer durante toda a noite. Éramos fantásticos: dois desconhecidos amantes, dois loucos apaixonados, duas chamas incandescentes na madrugada.

Foi no domingo ao pôr-do-sol que a crise começou. Ela se olhava no espelho, de costas para mim, e vi que chorava. Sem me olhar, perguntou se eu a amava. Amor? A pergunta me parecia tão sem sentido. Mal nos conhecíamos. O que tinha o amor a ver com isso? Era aquela intensidade que ela tinha, aquela coisa escondida ardendo dentro de si que não me revelava totalmente. Então, não respondi com palavras. Apenas fitei o espelho por cima de seu ombro e esperei.

E aí que aconteceu.

Quando me viu a observá-la, socou o espelho na altura do meu reflexo e, enquanto ele se espatifava no chão, urrou:

— Você esqueceu dos meninos! — e chorou amargamente.

Corri para pegar uma toalha no banheiro porque sua mão sangrava muito com os estilhaços do vidro. Quando voltei, tinha um revólver na mão.

— Calma… calma… não precisa disso. Fale o que está te incomodando… — fui rodeando devagar, tentando me aproximar da saída. Ela balbuciou algo inaudível e depois falou com a voz bem rouca:

— Eu não vou te machucar. Pode ficar tranquilo. Isso é para mim. — balançando a arma e apontando sobre a têmpora direita.

— Mas… — continuei e não soube como prosseguir. Não fazia sentido. Ela só podia ser louca. Ou—o que fiz?—teria sido enlouquecida por mim? Nos conhecíamos há tão pouco tempo. Que culpa eu poderia ter? — …Mas, por quê? — concluí a pergunta, sentindo-me estúpido.

— Eu te amo mais do que tudo. — e sorriu tristemente.






Sobre Até a Lua:

Esse é um texto fictício de 4.000 palavras sem nenhum valor moral agregado. É totalmente diferente do que já escrevi até aqui e fiquei até mesmo na dúvida sobre postar ou não postar, mesmo tendo criado esse blog justamente para experimentar novas possibilidades. Fiz uma enquete no Facebook e no Twitter e as respostas que recebi foram positivas. E, como quem cala, consente, aqui está o texto :) Quero muito saber o que acharam e o que entenderam, teorias, dúvidas etc. Obrigada pela atenção e divirtam-se!