Por que nascemos?




Ela estava afundando.
— Não esqueça de tomar a pílula… — repetia sua voz em algum lugar da mente, reverberando nas cavidades da face como se fosse som de verdade. — Não pode esquecer… não esqueça… — o rosto foi pendendo, os braços moles se recusando a alcançar a cabeceira, a mandíbula folgando preguiçosa. Logo já estava num sono profundo. Um sono muito profundo.
Um sono profundo, como o de Adão, quando Deus lhe retirou a costela para gerar a Eva.
O sono profundo de Abraão, quando Deus firmou com ele uma promessa.
O sono profundo de José, quando viu a escadaria que levava ao céu, populosa de anjos subindo e descendo até a Terra.
O sono profundo dos justos, pelos quais Deus trabalha enquanto dormem.
O sono profundo dela para gerá-lo, sua promessa, seu anjo, o trabalho bem-realizado de Deus.
Contra todas as possibilidades, contra todos os ‘cuidados’, ele foi a vida que encontrou um caminho. O escolhido.
Às vezes ela imaginava que Deus devia pré-fabricar as almas para depois as encomendar como o treinador de um time:
— Vai para o aquecimento que você já vai entrar.
— Sério, Deus? É minha vez? — a alma nova reluziria de empolgação ante a possibilidade de experimentar a vida na Terra pela primeira e única vez.
— É sua chance, garoto. Vai lá transformar aquela família.
A alma nova olharia para o casal lá embaixo, ocupado e cheio de planos, levantaria uma sombrancelha e duvidaria.
— Deus, sem querer questionar, mas não me parece que eles estão esperando um filho não.
Deus havia de sorrir, cruzar os braços e dar uma piscadinha.
— É, mas não se preocupe. Vai lá que eles estão precisando de você.
O rapaz já estaria dando pulinhos, alongando o pescoço, sacudindo os braços, feliz, pronto para revolucionar o mundo. Antes de mergulhar na vida, Deus o seguraria pelo ombro e daria mais uma dica:
— E se a coisa ficar feia, lembre-se: já, já você está de volta. Não dura muito.
Eles se abraçariam forte por uma última vez em algum tempo, tentando matar a saudade física antecipada e registrar nele o prazer da eternidade antes do trauma de nascer.
E Ele a faz cair num sono profundo além da consciência e da lembrança. Foi o momento em que se encontraram entre o aqui e o lá da escada e o pequeno se tornou, tão temporariamente, seu.
Quando seu esposo veio até a cama, a encontrou roncando meio sentada, com a cabeça caída e, no colo, um livro. Ele sorriu e sacudiu a cabeça enquanto afofou o travesseiro, endireitou as cobertas, colocou o livro na cabeceira e desligou a luz. Antes de adormecer, lembrou que precisava lembrá-la de alguma coisa importante, mas foi interrompido pelo balbuciar dela no sono:
— Obrigada, Deus. Muito obrigada.
E dormiu também.