Um novo início a qualquer momento

Uma lareira não aquece sem fogo, especialmente, quando não tem lenha.

Mas não há homens na casa para cortá-la e provavelmente nunca mais haverá.

Ela olha pela janela e vê as folhas apodrecidas acumuladas no chão, sinal derradeiro do inverno que se aproxima. A casa de madeira que seus sogros construíram mal será capaz de conter o frio. E aquela sala com móveis rústicos esporádicos não é um abrigo apropriado para o luto. A despensa só tem mais algumas latas de ensopado de feijão e milho. Logo. A morte vem breve para todos.

As mãos estendidas em vão para a lareira vazia são enfiadas no bolso do cardigã verde-musgo. A onda de lembranças e dores se encaminha do coração para os olhos, mas ela a interrompe bem ali no meio do esôfago. Não, agora não é hora de choro. É hora de luta.

Ela solta o cabelo loiro do coque desalinhado e tenta firmá-lo num arranjo mais prático. Apalpa as pálpebras para se certificar de que nenhuma lágrima teimosa escapou e deixa descansar as mãos ali por apenas um segundo. Seu rosto, apesar de tudo, está quente. As bochechas provavelmente rosadas. Mas, não importa. Não há ninguém ali para admirá-las. Então deixa pender os braços ao seu lado e abre e fecha os punhos para reativar a circulação. E com o canto dos olhos divisa a ferramenta para sua missão.

— Vá e pegue esse machado. — ordena a si mesma em voz alta.

Ultimamente vinha funcionando só assim: através de comandos. Abra os olhos. Levante da cama. Encha a tina de água e lave o rosto. Sobreviva.

Parece um luxo sobreviver, com tanta gente morrendo lá fora. Mas, é um luxo a qual teria que se submeter. Não por vontade própria, mas por ele (ou ela). Que quer que fosse, em breve estaria lá.

Mas, antes precisava pegar o machado.

É pesado e áspero, especialmente no contato com mãos ressecadas pelo frio. Está fincado num toco de madeira, o último daquela pilha que ele tinha cortado antes de partir. A onda de lembranças e dor sobe um pouco mais, do meio do esôfago para a garganta, mas ela a libera num gemido grave e baixo quando faz força para soltar o machado. O esforço no corpo faminto a cega com uma visão do passado recente.

— Não vou morrer como ele, prometo. — ele sussurrou sob o batente da porta.

Já estava de uniforme, pronto para responder ao chamado para defender sua pátria. Não que tivesse opção. Em tempos como aquele nunca havia escolha, exceto entre a possivel morte nas mãos do inimigo e a morte certa nas mãos da nação. Daquela vez, observando seus olhos azul-celeste transbordando de medo e tristeza, ela tinha chorado mesmo, apesar de todos os alertas de sua mãe de que tinha que ser forte. É a sina da boa esposa: ser forte. Mas, aquele choro era acumulado por visões ainda mais antigas, do primeiro marido do qual já tinha sido enviuvada por causa da maldita guerra. Jurou na época que seu coração jamais se recuperaria. Mas, que outro destino havia para uma mulher senão amar e servir ao homem amado? Então nem um ano se passara e já havia se casado novamente. E não foram nem meses desde as núpcias, quando chegou a carta que tanto temiam. Ela já a conhecia. E junto com a carta, batidas fortes na porta de homens vestidos de uniformes e exibindo uma insígnia. 

É o símbolo do nosso povo, explicaram. É a nossa esperança, nossa chance, gritaram com vozes graves e roucas. Por que que sempre que falavam, mesmo coisas tão doces, cuspiam as palavras como um insulto? Declamações cheias de ódio e autoritarismo: esperança para o nosso povo! Esperança sempre deveria ser dita como uma melodia.

— Não vou morrer, vou voltar. — ele a assegurou mais uma vez, acariciando suas bochechas rosadas.

— Foi isso que o Franz disse… — murmurou entre lágrimas.

— Ei! — ele ergueu o rosto dela com dois dedos e depois segurou seu rosto entre as mãos. Com um ímpeto de emoção romântica não usual, beijou-a uma última vez e disse: — Eu não sou o Franz. Sou um soldado! Nós vamos vencer essa guerra, você vai ver. Estarei aqui antes do Natal. — E sinalizando com o rosto a pilha de madeira no canto da sala, arriscou sorrindo: — Você nem vai ter a oportunidade de acender a lareira sozinha pela primeira vez.

O estalar das paredes da casa a desperta para o presente novamente. Lembranças são um luxo e ela as está desperdiçando. Apoia o machado na mesa maciça, ajusta mais uma vez o cachecol de lã e abre de sopetão a porta, deixando a ventania cortante invadir o local. É hora de cortar lenha. Porque ele (ou ela) está chegando.

Sobreviva! — comandou.



Era naquela tarde fria de tantos anos atrás que Margarete estava pensando ali deitada na cama de hospital. Hoje, nem comida, nem aquecimento, nem lembranças são um luxo. Pelo contrário: são tudo que ela tem de sobra. Sobreviveu a uma guerra, foi duas vezes viúva por causa dela e é mãe de um filho que nunca pôde conhecer o pai soldado. Ela olha com os olhos embaçados para o homenzarrão de cabelos grisalhos prostrado ao lado de sua cama. Como é possível que ele seja tão mais velho do que o pai na última vez que ela o viu? Ela fecha os olhos, descansa a cabeça no travesseiro, molha com a língua os lábios secos e frios e fica pensando na neve caindo lá fora. Não tem mais medo do frio. Uma moça simpática que só viveu em tempos de paz ajusta o termostato para ela.

— Está quente o suficiente, Frau Schneider?

É só o clique de um botão e uma conta de luz no final do mês para assegurar o calor. Que tempos fantásticos são esses! E ainda a recriminam se mesmo agora tem vontade de viver. Sim, não são todos que chegam até os noventa e três e muito menos os que passaram por todas as experiências dela. Mas, a morte chega breve para todos.

Ela deixa as lágrimas rolarem, porque, dessa vez, não precisa ser forte. Já foi forte o suficiente. Foi na força dos próprios braços que construiu a casa onde viveu, a maior parte do tempo sozinha, pelos últimos setenta anos.

Sozinha? O quarto do hospital está repleto de flores, presentes e cartões carinhosos. Sobreviva, é o pedido súplice do vizinho, da amiga, da nora, do pastor, da neta, da enfermeira, do médico. Sobreviva. Não é por falta de tentativa, ela confessa para si mesma, sacudindo o rosto. Mas, adianta reconfortá-los com palavras vazias? “Não vou morrer, vou voltar”? Isso não torna apenas maior o choque da notícia temida?

Agora ou depois, a morte vem breve para todos.

Mutter, geht’s dir gut?

Ela ouve a voz preocupada e gentil do filho idoso e nem tenta entender o significado das palavras. Ela quer ficar sozinha, acha que diz. Mais tarde ele pode trazer as bisnetas para vê-la, se ainda estiver por aí. Mas, antes dele sair, pede mais de uma vez para verificar se a porta está bem trancada. São tempos fantásticos, no entanto, a guerra ainda a assombra. Mas, de repente, o pensamento a assalta: a guerra finalmente acabou. E lágrimas felizes surgem no lugar das tristes, junto com uma esperança melodiosa. Seu corpo frágil começa a tremer, um arrepio percorre seu corpo, mesmo com o aquecimento zumbindo no máximo. Vá, volte para sua família, filho. Proteja-se, ela suspira.

Porque a morte vem breve para todos… e sorri de olhos fechados …graças a Deus.


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Sobre esse post
Essa história foi inspirada na minha querida vizinha Margarete. Ela mora sozinha no andar de baixo desta casa que ela mesma construiu quando mudou para cá no final da guerra. Ela me explicou que não sabia como construir uma casa, mas como não tinha homens por aqui, não tinha escolha, mesmo quando não tinha forças, pois senão não teria lugar para morar.


Margarete é extremamente lúcida e doce, mesmo que, em algumas ocasiões, um tanto ranzinza, com paranóias a respeito de possíveis arrombamentos de porta e bicicletas roubadas na nossa cidadezinha tranquila. Ela ainda acha que Cheetos é uma “boa refeição” porque tem bastante calorias a um preço tão barato e sempre recomenda para nós. Então, é meio difícil entrar na mente dela e entender o que é ter vivido o que viveu até os noventa e três anos de idade, mesmo quando ela conta sem reservas suas histórias e a de outros, piores ainda. Mesmo porque não parece guardar amargura alguma. Como é possível? Como não se ressente do único filho morar na Suíça, dos americanos terem matado seus maridos e seu corpo estar tão deformado e cheio de dores?

Eu não sei. Mas, sempre que a visitamos, sorri como se tivesse recebido um presente. Adora crianças e dá chocolates demais quando vê uma. Se tímidas ou extrovertidas, sempre as relembra e diz com um sorriso maroto: “Que tesouro precioso!” Ela também lembra do aniversário de todo mundo. Parece tão interessada na vida de cada um. Pede um abraço na hora da nossa saída, se assegura mais uma vez de que vamos continuar sendo seus vizinhos durante os próximos anos e diz mais de uma vez para que oremos por ela assim como ela tem orado por nós. Sempre dizemos que sim, mas, tristemente, muitas vezes esquecemos de fazê-lo.

Certa vez, meu marido estava passando pelo corredor em frente ao seu apartamento e a ouviu conversando com alguém. Ele estava prestes a bater na porta para perguntar se ela precisava de alguma coisa, quando ouviu melhor a conversa e se deu conta que estava falando com Deus ali, em voz alta, sozinha no apartamento. Fé e esperança que não diminuem com o tempo.

Foi na noite deste sábado passado que ouvimos um barulho forte de alguma coisa caindo e depois seus gemidos. Corremos até o andar de baixo e a encontramos no chão. Tinha tropeçado no degrau do banheiro. Não conseguiríamos levantá-la sozinhos, mas, por sorte, era a hora exata da chegada da enfermeira que vem trocar suas meias. Juntos conseguimos movê-la e levá-la até a cama. Ela disse que estava bem, apenas tonta e com um pouco de dores. De madrugada, ouvi o barulho do chamado de emergência e a ambulância chegando. Está há dois dias no hospital, com uma fratura complicada e médicos confusos a respeito do que fazer com ela. Cirurgia é meio arriscado a essa altura.

Eu não quero que a Margarete se vá ainda. Todos dizem, quando conto esta história, que ela está velhinha e esta talvez seja a sua hora. A maior parte sequer demonstra compaixão ou pena, apenas sacode os ombros do tipo “Nossa, ela ainda está viva?”

Sim, todos morremos um dia. Uns mais cedo, outros mais tarde e ela já viveu mais do que muitos esperariam. Mas, todos têm mães e avós que gostariam de manter para sempre no mundo. E ela é isso e mais para muita gente. Além de tudo, tenho certeza que não é a idade que determina se temos o direito de continuar vivos ou não. Ou é?

Estou sentada numa sala, obra das mãos da Margarete, e é difícil imaginar que um dia ela já foi tão jovem. Mas, foi mais jovem do que eu que passou por seus piores pesadelos e sobreviveu.

Obrigada, Margarete, por esse presente. O que quer que aconteça agora, que você tenha paz.



Existe amor incondicional
Que tudo suporta e nunca acaba
E esperança inabalável
Que suporta toda provação do tempo.
Existe uma luz que nos mostra o caminho
Mesmo que não possamos enxergar a tudo
Existe a certeza da nossa fé
Mesmo que não compreendamos tudo.

Existe reconciliação mesmo para inimigos
E paz verdadeira depois da luta,
Perdão para os piores pecados,
Um novo início a qualquer momento.
Existe um reinado eterno de paz,
Em nosso meio já está:
Um pedaço do Céu aqui na Terra,
Em Jesus Cristo, Filho de Deus.

Ele é o centro da História,
Ele é a âncora no Tempo.
Ele é a origem de toda a vida
E nosso destino na eternidade.
E nosso destino na eternidade.

Existe cura maravilhosa,
A última salvação na necessidade.
Existe consolo na dor e no sofrimento,
Vida eterna após a morte.
Existe justiça para todos,
Por nossa fidelidade uma recompensa para sempre.
Existem bodas que duram eternamente
Com Jesus Cristo, Filho de Deus.

Ele é o centro da História,
Ele é a âncora no Tempo.
Ele é a origem de toda a vida
E nosso destino na eternidade.
E nosso destino na eternidade.